Os resultados podem ajudar a eliminar uma das barreiras à implementação do tratamento em larga escala e renovar as esperanças para as pessoas com doença de Chagas
Um tratamento com duração de apenas duas semanas para pacientes adultos com doença de Chagas crônica demostrou, comparado com placebo, ter eficácia semelhante e efeitos colaterais significativamente menores do que o tratamento padrão com duração de oito semanas, de acordo com os resultados de um estudo clínico realizado na Bolívia sob a coordenação da iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi).
Calcula-se que a doença de Chagas afete seis milhões de pessoas no mundo todo, podendo causar danos irreversíveis a órgãos vitais e levar à morte. O benzonidazol, um dos dois medicamentos utilizados para tratar Chagas, é tradicionalmente administrado duas vezes por dia durante oito semanas, seguindo as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e orientações nacionais.
O estudo clínico de fase II, realizado em três centros da Bolívia, procurou melhorar a segurança, tolerabilidade e eficácia do tratamento com este medicamento, que foi descoberto há meio século. Iniciado em 2016, este foi o primeiro estudo da história conduzido com placebo para testar diversas durações e dosagens do tratamento com benznidazol, tanto como monoterapia quanto em combinação com fosravuconazol.
Os resultados foram apresentados pela primeira vez hoje na XV Jornada sobre la Enfermedad de Chagas, organizada pelo Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal, centro que recebe apoio de La Caixa). “Acreditamos que o tratamento possa poupar as pessoas com Chagas do risco de passar o resto da vida com as complicações debilitantes associadas à doença. Entretanto, o tratamento atual pode provocar efeitos colaterais graves, o que frequentemente leva algumas pessoas a não procurarem ou a recusarem o tratamento e os profissionais de saúde a não recomendá-lo”, explica Joaquim Gascon, um dos pesquisadores principais do estudo e diretor da Iniciativa de Chagas do ISGlobal.
“Nós demonstramos que que um tratamento mais curto pode ter a mesma eficácia e ser muito mais seguro. Este resultado pode transformar o paradigma do tratamento de Chagas, melhorando a adesão e incentivando a adoção mais ampla pela comunidade médica”, diz o Dr. Faustino Torrico, presidente da Fundação CEADES, da Bolívia, e um dos pesquisadores principais do estudo.
Todos os braços do estudo, tanto em monoterapia quanto em combinação, demonstraram ser eficazes. Oitenta por cento dos pacientes alocados no grupo que recebeu a dose padrão de 300mg/dia de benznidazol, mas durante duas semanas em vez das oito semanas usuais, não apresentaram sinais do parasita no sangue seis e 12 meses após a conclusão do tratamento. Um resultado semelhante foi observado no grupo que seguiu o tratamento padrão de oito semanas.
Significativamente, nenhum dos pacientes no grupo com a duração reduzida interrompeu o tratamento. Em média, dois de cada dez pacientes que seguiram o tratamento com a duração padrão com benznidazol abandonaram o tratamento devido aos efeitos colaterais.
“Estes resultados renovam as esperanças das pessoas que vivem com esta doença silenciosa e podem transformar a realidade do acesso ao tratamento em países nos quais a doença é endêmica. Com um regime muito mais simples, não há desculpa para não tratar as pessoas que têm doença de Chagas”, afirma o Dr. Sergio Sosa Estani, diretor do Programa Clínico de Chagas da DNDi. “Agora, a DNDi continuará a trabalhar com programas nacionais, parceiros e ministérios de saúde de países endêmicos para confirmar os resultados e incentivar que tomem as medidas necessárias para registrar o novo regime e transformar esta descoberta revolucionária em realidade para as pessoas afetadas pela doença.”
O estudo foi conduzido em parceria com a CEADES (Fundación Ciencia y Estudios Aplicados para el Desarrollo en Salud y Medio Ambiente); a ISGlobal; a Eisai Co. Ltd., companhia farmacêutica japonesa que fabrica fosravuconazol; a Elea e a Fundación Mundo Sano, companhia farmacêutica argentina que fabrica benznidazol e fundação associada, entre outras, com financiamento do Global Health Innovative Technology Fund (GHIT).
A DNDi continua realizando pesquisas pré-clínicas e clínicas para descobrir, desenvolver e testar novos medicamentos e combinações de medicamentos para o tratamento de Chagas.
Sobre o estudo
O estudo “BENDITA” (Benznidazole New Doses Improved Treatment & Associations, ou Novas dosagens de benznidazol, tratamento aprimorado e associações terapêuticas), foi conduzido em centros da Plataforma de Chagas coordenados por ISGlobal e CEADES em Cochabamba, Tarija e Sucre, na Bolívia. Foram testados contra um placebo seis braços de tratamento com durações e dosagens de benznidazol variadas, tanto como monoterapia quanto em combinação com fosravuconazol:
- O tratamento padrão de 8 semanas de duração, com a dose diária padrão de 300mg/dia de benznidazol em monoterapia.
- Um tratamento de 4 semanas de duração, com uma dose diária de 300mg/dia de benznidazol em monoterapia.
- Um tratamento de 2 semanas de duração, com uma dose diária de 300mg/dia de benznidazol em monoterapia.
- Um tratamento de 4 semanas de duração, com uma dose diária mais baixa de benznidazol, de 150mg/dia, em monoterapia.
- Um tratamento de 4 semanas de duração, com uma dose diária mais baixa de benznidazol, de 150mg/dia, em combinação com fosravuconazol.
- Um tratamento de 8 semanas de duração, com uma dose semanal mais baixa de benznidazol, de 300mg/semana, em combinação com fosravuconazol.
A eficácia foi medida por meio de resposta parasitológica mantida aos seis meses, com uma avaliação final 12 meses após a conclusão do tratamento.
Sobre a doença de Chagas
A doença de Chagas, ou tripanosomíase americana, é uma doença tropical negligenciada (DTN) endêmica em 21 países da América Latina, porém também presente na América do Norte, Europa, Japão e Austrália. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) estima que a doença afete aproximadamente 6 milhões de pessoas, com 30.000 novos casos e 14.000 mortes por ano.
É causada pelo parasita Trypanosoma cruzi (T. cruzi) e transmitida por insetos conhecidos popularmente como “barbeiros”. Também é transmitida de uma mãe infectada para o filho, através de transfusão de sangue ou de de alimentos contaminados. Desde que a doença de Chagas foi descoberta, em 1909, ela tem afetado sobretudo as populações pobres e vulneráveis, com acesso limitado ao sistema de saúde. Como a doença tipicamente é assintomática durante anos após a infecção, a maioria das pessoas com a doença não sabe que a tem. Para 30% a 40% das pessoas infectadas, a doença progride para um estágio final da fase crônica. Destas, a maioria sofrerá danos cardíacos, frequentemente resultando em morte súbita ou insuficiência cardíaca progressiva. A doença pode causar também o aumento do trato gastrintestinal e dos órgãos e transtornos motores gastrintestinais.
Atualmente, há somente dois medicamentos disponíveis para tratar a doença de Chagas, nifurtimox e benznidazol, ambos descobertos há meio século. O tratamento com benznidazol, o mais comum, dura 60 dias e pode ter efeitos colaterais indesejáveis, como intolerância gástrica, erupções cutâneas ou problemas neuromusculares, entre outros. Cerca de 2 a cada 10 pessoas que iniciam o tratamento não o terminam, principalmente devido aos efeitos adversos.
Sobre a DNDi
A DNDi é uma organização sem fins lucrativos de pesquisa e desenvolvimento que trabalha para disponibilizar novos tratamentos para pacientes com doenças negligenciadas, em especial aqueles que sofrem de doença de Chagas, doença do sono (tripanossomíase humana africana), leishmaniose, infecções por filárias e micetoma, HIV pediátrico e hepatite C. Desde sua criação, em 2003, a DNDi disponibilizou oito tratamentos novos. A estratégia da DNDi para a doença de Chagas consiste de três pilares: aprimoramento das ferramentas diagnósticas e terapêuticas por meio da inovação em pesquisa e desenvolvimento; promoção da colaboração e fortalecimento da capacidade em países endêmicos através de uma plataforma científica; e aumento do acesso de pacientes ao diagnóstico e tratamento.
Sobre o ISGlobal
O Instituto de Saúde Global de Barcelona, ISGlobal, é fruto de uma aliança inovadora entre La Caixa e instituições acadêmicas e governamentais com o objetivo de contribuir com os esforços realizados pela comunidade internacional para abordar os desafios da saúde global. A ISGlobal é um polo consolidado de excelência em pesquisa que cresceu graças ao trabalho, inicialmente no mundo da saúde pelo Hospital Clínic and the Parc de Salut MAR, e na esfera acadêmica pela Universidade de Barcelona e a Universidade Pompeu Fabra. O mecanismo pivô de seu modelo de trabalho é a transferência de conhecimentos gerados pela pesquisa científica para a prática, tarefa coordenada pelos departamentos de Educação e Políticas Públicas e Desenvolvimento Global do instituto. O ISGlobal é membro do programa CERCA, da Generalitat de Catalunya.
Sobre a CEADES
A Fundação CEADES é uma organização sem fins lucrativos que procura contribuir com o conhecimento e a solução dos problemas de saúde e meio ambiente na Bolívia, com ênfase na pesquisa e tratamento de doenças tropicais negligenciadas. De modo complementar, realiza atividades de formação/capacitação de profissionais de saúde, educação comunitária e projetos inovadores sobre ciência e sociedade e transferência de tecnologia. Desde 2008, ela desenvolveu modelos de atendimento especializado em sete centros da Plataforma de atendimento integrado para pacientes adultos com doença de Chagas. No campo da pesquisa científica, a CEADES participa de diversos estudos clínicos de novos medicamentos e biomarcadores de cura e progressão da doença. Ela trabalha em parceria com a ISGlobal e conta com financiamento da AECID. Além disso, executa projetos em colaboração e juntamente com a DNDi, Mundo Sano, a UTEP, o INH e HORIZON2020, da U.E. No nível local, ela apoia Redes Interinstitucionais, Organizações Sociais de Pacientes, e se coordena com instâncias estaduais, como o Programa Nacional de Chagas e o Ministério da Saúde.
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Photo credit: Ana Ferreira-DNDi